Foi assim, meu lábio inferior rachou. Primeiro de leve, quase apenas descamação. Depois, pequenos cortes esbranquiçados e doloridos.
E apareceu uma afta bem na parte posterior da minha língua, onde Oncilom nenhuma alcança. E tudo o que eu como dói.
Aí minha garganta inflamou. Deu de doer sem parar, de me deixar sem ânimo pra trabalhar, nem pra ficar deitada. Calafrios, mais dor.
Tentei medicação, descanso, alimentação leve, leite quente. O lábio estourou de vez, a afta se contraiu no fundo de minha língua e a garganta parece querer explodir.
O lábio, a língua e a garganta - três pontos vitais da fala, imobilizados pela minha falta de capacidade de expressar o que é preciso. Fica sempre o dito pelo não-dito.
Talvez fosse preciso dizer mais, mas o medo se opõe. Unidos, lábio, língua e garganta parecem querer me chamar a atenção para o fato de que existem e precisam ser usados para transformar determinadas situações.
Então eu percebi que o meu corpo, ou melhor, a parte superior dele, encontra-se em pleno protesto contra a minha incapacidade de fazer girar a Roda da Fortuna.
Dando voltas e voltas ela vai, e onde ela pára, ninguém sabe.
E tem aquela colega de trabalho que chega arfante, pra pedir alguma coisa. Chefe nova, contexto novo, muita gente tenta fazer jogo de cena. Como se jogo de cena disfarçasse incompetência ou algo assim. Que seja. Só que eu detesto desespero. Sou do tipo que não se desespera nem em situações críticas, quem dirá por causa de uma minuta de ofício com três parágrafos.
E ela, ofegante, transtornada, em pânico. Tava com a chefa numa reunião e ela pediu que ela me pedisse [pausa para respirar] o tal do ofício. "Ela tem que assinar! Está com você, não é??? Ela quer agora! Tem que imprimir!!!" Todas essas interrogações e exclamações, ditas com respiração ofegante e sobrancelhas levantadas, fizeram-me desejar intensamente jogá-la janela abaixo. Mas eu lembrei que meu cabelo tá um lixo e eu definitivamente não gostaria de aparecer nas páginas policiais assim.
Respirei fundo, olhei pra ela com expressão impassível e comecei a falar a s s i m, bem compassadamente, como um socorrista que tenta se comunicar com um moribundo durante os primeiros socorros. Coisas do tipo: 'está tudo bem, não se mexa' ou 'fique calmo, agora vamos imobilizar você.' Daí comecei a falar, com uma tranquilidade de quem sabe que as férias estão chegando, o que ela precisava levar: 't u d o - b e m, e u - t e n h o - e s s e - m a t e r i a l, q u e - é, n a - v e r d a d e - u m a - m i n u t a - d e - o f í c i o - e - n ã o - p r e c i s a - d e - a s s i n a t u r a. V o u - i m p r i m i r, s ó - u m - m i n u t o." E ela foi perdendo aquele ar de apocalipse, mais desconcertada pela minha reação anticlímax do que realmente por se acalmar.
As pessoas são livres, inclusive para showzinhos particulares em momentos banais. Só não podem esperar que os outros participem deles.
Nos últimos dias, percebi que todos que eu tenho lido na internet tiveram o privilégio de ser aluno, ler, entrevistar, ouvir palestra ou servir um cafezinho para Dona Ruth Cardoso.
Eu, pobre mortal, só lembro dela ladeando aquele um que reinou no país durante tristes oito anos.
Não demorou muito até que eu percebesse que este blog se transformou em blog de buscas inadequadas, especialmente sobre... bah, nem vou colocar aqui as palavras-chave, para não piorar as coisas.
Paciência. ----------
Voltei de Teresina sexta-feira, onde passei três dias a trabalho. Minha capital tão querida cresceu e tem ares adolescentes de cidade grande. Em todo caso, aplica-se à cidade cajuína o mesmo princípio que uso para Recife: te amo à distância. :)
De quebra, conheci, em Teresina, a história de uma das mais belas composições de Caetano, Cajuína. Detalhes aqui.
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Eu não tô legal. Na verdade, ando malzaça nesses dias, embora exibindo esse semblante tranquilo-patético. Nem razão, nem emoção me oferecem respostas suficientes.
Eu não tô legal, mas como dizer isso sem parecer muito emo?
Criada no final da década de 1980, quando diziam ser a "cidade do futuro", Palmas foi planejada tentando manter os conceitos que nortearam a criação de Brasília: espaço verde, qualidade de vida, blá blá blá Whiskas. Era então a cidade das oportunidades e muita gente para lá (também) migrou em busca de emprego, dinheiro, uma vida melhor.
Hoje, a cidade tem uma "esplanada" de secretarias do Governo, muitas tentativas de "arquitetura arrojada", barro vermelho no chão e rotatórias por toda a parte. E só. Palmas é uma cidade estranha, mal cuidada, com enormes espaços desabitados, pouca gente pela rua e nenhuma marca especial. Um povo que pouco se vê e, quando se vê, pouco sorri.
Vale a pena pela "Praia" da Graciosa, margens do Rio Tocantins, que tem um belo pôr-de-sol e um clima agradável de rio.
Talvez seja pedir muito para uma cidade com menos de 20 anos, mas a impressão que dá é que que depois do boom de prosperidade na primeira década, a cidade estagnou.
E foi assim que a cidade que queria ser Brasília ficou velha aos 19 anos.
O trânsito da pequena Brasília, que quando eu conheci, há uns seis anos (!) era um bálsamo pra quem vinha de uma grande cidade, está se tornando um pequeno caos. Falta de vagas, congestionamentos, atropelamentos, mortes. Até a faixa de pedestre, antes um símbolo da civilidade brasiliense, teima em se apagar do asfalto e se tornar um apenas um risco a mais.
Dizem que Brasília é uma cidade de amplos espaços e muito barro, poucas calçadas e, portanto, difícil de se enfrentar a pé. Concordo, mas também vejo uma cidade que é um parque ao ar livre, pelo menos no Plano Piloto. Aqui, se encontra tudo - eu digo TUDO - o que se precisa no comércio das entrequadras, e tem sempre uma delas a alguns metros.
É verdade também que o sistema público de transporte é de péssima qualidade, de tal forma que até o metrô, que parecia uma solução promissora, já saturou. Mas as pessoas insistem em ir pro trabalho sozinhas num carro onde caberiam cinco. Poucas vezes vi esquemas de caronas ou algo que minimizasse o individualismo reinantes nestes tempos.
Não é que eu ache que a solução seja individual. É certo que falta melhorar o sistema, o fluxo e mesmo o transporte alternativo. Mas certamente Lúcio Costa não pensou uma cidade para se cruzar apenas sobre quatro rodas. O problema é que ele não previu que, algumas décadas depois, o ser humano passaria a caminhar exatamente assim - sobre quatro rodas.
E tem as reações que fogem ao meu controle. Reações que deveriam ser pensadas, calculadas, medidas, pesadas, mas que acabam escorregando e traçando um caminho próprio, por vezes descomedidas.
Uma delas é a minha reação à possibilidade de uma criança estar sendo agredida. Em qualquer lugar, a qualquer momento, seja quem for, eu simplesmente PRECISO fazer alguma coisa e faço, com toda a falta de medida que o desespero oferece.
E não, eu não fui contaminada pelos zilhões de matérias sobre a criança - cujo nome não escrevo para evitar buscas desavisadas - que foi atirada etc. No meu caso, o pânico ante a agressão contra crianças tem raízes mais fundas, antes do Edifício London e bem antes do muitíssimo bem-vindo Estatuto da Criança e do Adolescente.
Minha mãe, quando eu era bem pequena, batia muito num dos meus irmãos, e apenas nele. Eu assistia àquelas cenas de violência apavorada, acuada, impotente. Os instrumentos eram muitos, os motivos fúteis, mas os gritos dele eram sempre aterrorizantes. Eu sentia uma compaixão infinita e, assim que reuni forças, passei a defendê-lo com unhas e dentes.
Na minha vida, não foram poucos os pedidos de investigação que fiz a delegacias de proteção à criança e adolescente, sempre que suspeitava de algum vizinho mais agressivo com os filhos. Poderia relatar aqui os muitos casos, em contextos e tempos diferentes, mas não vêm ao caso agora. Vale a pena só lembrar uma vez que eu ouvi os gritos e corri - sempre desesperada - para pedir ajuda ao porteiro do prédio para salvar a criança que estava sendo "espancada". Ele foi até lá comigo e - vexame máximo - eram pai e filho brincando alegre e ruidosamente.
Agora é aqui no meu prédio, e não creio se tratar de brincadeira. Não sei se essas situações acontecem com tanta frequência perto de mim por causa da minha hipersensibilidade ao problema, ou se isso é uma espécie de missão. O fato é que, exagero ou realismo, eu já solicitei mais uma investigação.
Sei lá se Brasília é mesmo a Terra Prometida antevista pelo santo italiano Dom Bosco, padroeiro da cidade, em seus famosos sonhos. Segue trecho, retirado daqui:
Entre os paralelos de 15º e 20º havia uma depressão bastante larga e comprida, partindo de um ponto onde se formava um lago. Então, repetidamente, uma voz assim falou: "quando vierem escavar as minas ocultas, no meio destas montanhas, surgirá aqui a terra prometida, vertendo leite e mel. Será uma riqueza inconcebível..."
O certo é que conheço inúmeras histórias de salvação, inclusive a minha própria, de pessoas que foram resgatadas pela Capital.
Gente perdida em sua terra natal ou em terras igualmente estranhas, sem emprego, sem perspectiva de realização, sem caminhos por onde seguir.
Conheci aqui pessoas que se curaram de vícios, da melancolia, do desespero, das dívidas e da falta de sentido. Tudo aqui, debaixo desse céu esplendorosamente azul.
Não que Brasília seja exatamente um éden no Planalto Central, mas é certo que a cidade oferece um valor importante e caro, às vezes esquecido e empoeirado na luta insana: a dignidade.
E foi assim, vertendo leite e mel, força e doçura, a cidade psicopata não apenas me resgatou, mas me seduziu, de forma que onde eu desejo estar hoje é exatamente onde estou: bem aqui.