Estado de Coisas
Pavio curto e bobo
Uma amiga me chamou a atenção, contando histórias dela, para algo que acontecia comigo, sem que eu percebesse. É a armadilha do 'fala por mim, mas não diga que fui eu'. Explico.
Se alguém percebe que há um pavio curto desbocado na parada, passa a fazê-lo de portador de bombas. Esse alguém cochicha algo em seu ouvido, indignado, e sai de mansinho antes da bomba explodir. Desaforos, reclamações, críticas e frases duras - tudo que alguém 'normal' não diz, passa a ser recado bem dado na boca do pavio curto.
O resultado não é justo - o pavio curto fica visto como chato, reclamão, insuportável, enquanto a pessoa 'normal' olha para o lado e finge que nada viu. É cômodo, prático e de baixíssimo risco para a pessoa 'normal'. E afinal, quem liga se esse pavio descontrolado estoura mais uma vez?!
Eu, pavio curto por natureza, custei a perceber a armadilha. E nessa eu não caio mais.
Carnavais a apagões
Aconteceu há muitos anos com uma amiga minha. Carnavalesca convicta e viciada em fevereiros, era daquelas que choravam quando a famigerada Quarta-Feira de Cinzas chegava, implacável. Quem brinca Carnaval sabe do aperto no peito que começa a sufocar na Terça-Feira Gorda, e que só não dilacera o coração por que ainda há algumas horas para aproveitar e a gente não pode se dar ao luxo de ficar triste.
Pois bem, essa minha amiga estava pronta para mais um dia de Carnaval, fantasiada e a postos para subir e descer ladeiras em Olinda. Foi quando aconteceu. Ao olhar pros lados e ver toda aquela alegria excessiva, aquela gente alcoolizada e fora de órbita, a música alta e as pessoas pulando freneticamente, ela sofreu o temido 'apagão de Carnaval'. De repente, em meio a folia esfuziante, minha amiga se deu conta de que nada daquilo fazia sentido pra ela.
Como num estalo, ela havia despertado da catarse carnavalesca. Perguntou-se o que estava fazendo ali e não encontrou resposta. Olhou para os lados, tomou uma cerveja na esperança de relaxar um pouco, sorriu para amigos e acompanhou uma orquestra, mas não havia mais volta. O Carnaval e toda a sua histeria coletiva tinham definitivamente acabado para ela. Nunca mais pôs os pés na folia depois disso. Sem remorsos, ou críticas, nem saudade, a festa simplesmente deixou de causar nela aquela alegria que não precisa de explicações.
Todos os anos, temo que vá acontecer a mesma coisa comigo. Chego a sentir o apagão de Carnaval se aproximando, quase começo a achar aquilo tudo tão ridículo e cansativo, mas não tem jeito, eu acabo me deixando levar. A festa me deixa, ao mesmo tempo, entorpecida e agitada. Eu simplesmente não consigo pensar. Foi assim que me senti ontem no Bal Masqué, um dos bailes mais legais das prévias carnavalescas em Recife.
Talvez tenha faltado à minha amiga ouvir
Almir Rouche momentos antes, e o tal apagão não teria acontecido.
Pré-afinidades
Por um tempo, eu acreditei que poderia classificar e me aproximar das pessoas por uma espécie de pré-afinidade.
A pré-afinidade me levou a crer que as pessoas possuíam passe livre mediante a apresentação de algumas características e preferências. Do tipo,
ela é pernambucana -> é gente boa.
Ele curte Caetano -> é um cara legal.
Aquela tem uma coleção de discos de vinil -> posso dividir apartamento com ela sem medo.
Tudo assim, muito simples e dedutivo.
Cometi erros grotescos usando o critério da pré-afinidade. As pessoas, antes do convívio duradouro e verdadeiro, de passar por dificuldades junto com a gente e de esclarecer mal-entendidos satisfatoriamente em momentos críticos, são todas apenas grandes filhas da puta. Nada é álibi nem credencial e certas garantias aparentes são, mais das vezes, apenas máscaras que escondem rostos feiosos.
Buscar as pessoas por pré-afinidade me ajudava a superar a dificuldade em me aproximar das pessoas, que era agravada pela necessidade de tê-las por perto. A solidão me mostrou que as afinidades só valem a pena quando contruídas lentamente e com base na verdade, por mais estranhas que se mostrem, ao fim do trabalho.
A única credencial que mantenho é - pessoas que criam gatos são, no mínimo, interessantes. :)
Make up pós-morte
Uma colega de outro estado ligou pra mim hoje pedindo ajuda, problemas a resolver, a sogra morreu durante a viagem de fim de ano da família em Recife, eles precisam voltar para Brasília para cremar o corpo e... ufa!
Depois de ajudá-la com o lance todo de embarcar o corpo, eu me perguntei por que ela fez questão de resolver coisas tão dolorosas e burocráticas pessoalmente, quando a própria funerária poderia se encarregar disso.
A resposta veio de outra pessoa que ajudou a resolver o caso: ela precisava acompanhar o embarque do corpo por que a velhinha tinha como um dos últimos pedidos o de... ser maquiada depois de morrer. :O
O detalhe é que ela (digo, o corpo) será cremada em Brasília, e mesmo assim exigiu a maquiagem.
Agora, o problema é que não sei se acho tudo isso muito excêntrico ou se durmo de luz acesa esta noite.
Quem nunca cantou em pensamento...
... aquela que o Alexandre Pires cantava...
como é que uma coisa assim
machuca tanto
toma conta de todo o meu ser...
que atire a primeira bolha de sabão.
Aquele
Ela olhou fundo naqueles olhos tão pretos e reconheceu de imediato os sinais inconfundíveis do desejo. Aquele olhar era um código, uma arma, uma mensagem.
Juntou aos olhos muito pretos a boca pequena e convidativa. Continuando a constituição daquele quadro, viu o corpo forte, os cabelos bem curtos, a pele morena, a voz suave que a deixava tonta.
Quis estar mais próxima, perto, dentro. Sorriu meio sem jeito, e já não conseguia parar de olhar para aquele homem tão desejado.
Lembrou do marido, do casamento, dos juramentos, dos contratos. Por uns instantes, a vida real conseguiu arrancá-la daquele sonho de beleza masculina no qual imergira quase sem limites.
Olhou novamente aqueles olhos escuros e convidativos, suspirou e se despediu do sonho. Pouco depois de sair, reuniu forças para praguejar contra o Grande Católico Filho da Puta que inventou essa tal de monogamia...
Quem?
Quem nessa vida já trocou o bom e conhecido cotidiano por uma paixão desconhecida e assustadora?
Quem abandonou casa, família, emprego e certezas apenas para viver como brisa?
Essas pessoas foram felizes? Quem são?
Quem abriu coração, corpo e mente para o novo, sem se proteger?
Valeu a pena trocar a rotina confortável por algumas histórias loucas para sorrir?
O que veio depois da onda gigante de renovação da vida?
É possível se manter assim, brisa que apenas passa?
Quem deixou a orla e se atirou no mar, sobreviveu?
As pessoas que conheço têm todas uma vida tão previsível...
Quem aí vive de aventura?
Pés na terra
Sempre achei que arrependimento era um sentimento negativo, aflito, derrotado. Até que eu me arrependi com muita força, talvez pela primeira vez na vida. E de uma decisão que há dois anos atrás era firme convicção - sair de Brasília. Passado esse pequeno longo período de tempo, constatei que deveria ter ficado. Percebi que a minha vida era melhor lá em vários aspectos, afinal, foi a cidade que me fez ser mais eu, a ponto mesmo de escolher (e ter a oportunidade de) voltar para casa. Perdi dois anos do ponto de vista profissional, engordei alguns quilos de frustação, deixei de fazer coisas simples que eram hábitos já muito caros, não me encontrei mais na minha cidade. Lembrei de tantas pessoas que me recomendaram que eu ficasse e me arrependi da teimosa e irredutível certeza de saber tudo o que era necessário pra mim, naquele momento. Arrependi-me de não ter reconhecido de imediato que Brasília é a minha segunda casa, e que posso ter ainda muitas outras.
Até que uma amiga me disse que, se eu não tivesse voltado, teria a perene e vã fantasia do que poderia vir a ser, o pior dos arrependimentos, aquele dos desejos não concretizados.
E percebi que não estava arrependida, e sim realizada e livre da ilusão da terra natal.
E não me arrependi mais.