Estou na sala de espera, ansiosa. Leio a revista "Veja Paraíso" atentamente, quando a atendente com grandes asas me chama: "sua vez!", diz ela, num tom melódico, suave e em harmonia com a música angelical que enche o ambiente de sons de harpa.
Do lado de dentro do consultório, o Todo-Poderoso me aguarda, barbas enormes e uma túnica alvíssima, de doer os olhos. "Seria um ótimo comercial para o Ariel", pensei, antes de cumprimentar solenemente aquela figura onipresente, onipotente e impressionantemente alta. Não era uma consulta qualquer. O Todo-Poderoso havia concedido a alguns mortais muito bem-comportados e exemplares, como eu, o privilégio de fazer pequenas alterações na obra.
"Pequenos reparos e ajustes necessários", era o que dizia o convite que havia aparecido misteriosamente na minha cama, na noite anterior. No verso, o endereço para onde eu deveria me dirigir e tomar o "táxi para a estação lunar". Pensei, desconfiada, que eles haviam plagiado a música de Zé Ramalho, Alceu Valença e Geraldo Azevedo, mas esse era um pensamento muito insignificante e não condizia com aquele momento grandioso. No rodapé, um pequeno aviso, em letras prateadas: "levanta-te e anda, pois o táxi não vai esperar mais que 15 minutos por ti."
Entro na sala, apreensiva. O Todo-Poderoso sorri, benevolente, e com delicadeza, me pergunta:
- Então, minha filha, o que vai ser?
- Ah, Deus, são tantas coisas!...
- Sei, filha querida, sei. Mas se tu amas o teu próximo como a ti mesma, deves ser breve e precisa, para que eu possa atender os teus irmãos lá fora.
Ele tinha razão, naquele jeito tão bíblico de falar - e eu que achava que isso era obra dos tradutores. Resolvi priorizar minha queixas.
- Seguinte, Pai, em primeiro lugar, o meu joelho. Sabe, Deus, passei mais da metade da vida sem usar minissaia também por causa dessas bolotas disformes.
- Sabe, filha, em verdade vos digo que o teu joelho não foi dos mais bonitos em toda a criação. Mas dai graças a Mim também por isso. Sendo tão linda como és, um joelho maravilhoso te conduziria à vaidade mundana e sabes que o meu Reino não é desse mundo.
- Ah sim, que grosseria a minha, primeiro deveria agradecer por tudo, talvez uma oração, ó Deus, como eu pude ser tão ingrata e...
Ele me interrompe suavemente:
- Acalma-te, aquieta-te! Não exigirei isso de vós, tão verdadeiramente humanos. Acaso não sabeis que eu sempre perdoarei vossos pecados e fraquezas?!
Baixei a cabeça, envergonhada com a minha ignorância e pude ver o meu joelho novinho em folha, lindo e discreto, como eu sempre sonhei. Pensei que deveria passar à próxima queixa, de forma a agilizar o trabalho divino.
- Ah, essa miopia, sabe, Senhor. É verdade que a cirurgia é bem simples, mas eu detesto a idéia de ter que cortar meu olho e...
Ele fechou os meus olhos com as mãos e, ao abri-los novamente, senti necessidade de retirar as lentes imediatamente: eu era uma ex-míope.
- Senhor, os meus cabelos...
O Todo-Poderoso passou as mãos nos meus cabelos, como que examinando cuidadosamente e, na medida em que o fazia, os cachos rebeldes se acalmaram e eu vi meus cabelos como se tivessem acabado de sair de uma queratinização eterna.
- Filha, todos que crêem serão salvos, mas sabes que eu preciso de tempo para atender os outros seres humanos exemplares que precisam de ajustes.
- Claro, Pai, queria agradecer os ajustes, verdadeiras bençãos e...
- Agradecerás por meio de tuas obras, querida.
- Sim Senhor.
Depois de um abraço, me despedi agradecendo novamente, um tanto nervosa.
Antes de fechar a porta, algo que eu não poderia esquecer:
- Senhor, uma última coisa.
- Sim, filha - respondeu, compreensivo.
- Esse meu jeito desatinado de me apaixonar...
- Vá e não te apaixones loucamente mais.
Fechei a porta aliviada, louca para voltar para a Terra e desfilar meus joelhos novos.
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